Me desculpem, me enganei. Não era nada daquilo. Me confundi no meio do caminho. A neve branquinha que caiu faz tempo, não foi nem nunca será uma poesia. Aliás, sim, pode até vir a ser, mas será uma poesia fria, gelada, morta, horripilante, petrificada como meus pés, de tanto frio. E me enganei quando disse que me sentia uma escritora famosa numa cabine isolada no alto da montanha. Não há escritor famoso que encontre inspiração no branco. A neve branca, o branco do papel... Muitas paredes brancas no caminho da inspiração. Não! Uma escritora famosa, como eu, se inspira na beira do mar, com os peixinhos a nadar, com os surfistas a surfar, com o sol a brilhar e as criançinhas a brincar. Não dá pra ser de outro jeito, não dá!
Me desculpem, me perdoem, me enganei. Não, não. Eu errei. Tomei o ônibus errado, peguei a vida errada. Eu, Andrea Mader Almeida, não era para ter nascido nesta vida. Errei de país, errei de cidade. Errei até de corpo. Fizeram uma bagunça lá no céu, foi no meio das preparações para as comemorações de 7 de setembro, e negligenciaram um pouco o script da minha vida. Vou reclamar. Não sei bem por onde começar, mas tenho certeza que isto tudo não passa de um grande engano.
Vejam só vocês. Me enganei no meu currículo escolar. Deveria ter feito medicina, para hoje estar ajudando os doentes e necessitados. Me enganei nas escolhas dos namorados, não acertei um, e casei com o marido errado. A minha filha, coitada, tenho lá minhas dúvidas, veio do pai errado. Me enganei na minha carreira. Troquei as letras pelos números. Me enganei. Hoje mal escrevo ou faço conta. Me enganei também na escolha do meu corpo. Nasci muito bonitinha e passei uma adolescência ocupadíssima com os meus pretendentes e a minha vaidade. Médica assim não dá certo. A medicina é uma profissão séria e compenetrada, que merece atenção e dedicação constantes. Não pude fazer isso pois estive sempre muito ocupada com quem eu amava e com quem deixava de me amar.
Veja só você, meu caro leitor, quanta enganação. Continuo convencida que cai no corpo errado. Hoje, eu deveria estar estabelecida como médica endocrinologista, casada, com 3 frilhos, uma empregada doméstica, um cachorro labrador, morando na beira da praia e indo de bicicleta ao trabalho. Escrevendo uma coluna semanal de crônicas para o Estado de São Paulo, sustentando uma reputação mais nobre e com intuito político social em prol do término da violência do país, participando ativamente na conquista de um meio-ambiente mais consciente, conquistando um espaço no Brasil para torna-lo um país menos corrupto, mais inteligente.
E aonde é que se reclama e com quem? São Pedro é porteiro na hora do desencarne, com ele não adiantaria reclamar pois seria começar pelo fim. Para reclamar para Deus teria que pedir uma audiência, ficar na fila de espera, meu apelo teria que passar pela aprovação dos anjos e santos e os espíritos assitentes pra chegar até Ele. Iria demorar uma vida, e esta já foi meio que perdida. Não tenho mais tempo a perder. E não me venham com esta estória do livre arbítrio não, pois eles lá é que se confundiram na hora d’eu voltar para a terra. Agora, quem é que pode com isso quando, aos 35 anos, foi tudo trocado lá pelos céus? Fui jogada de um lado para o outro, empurrada de uma fila a outra, meio serviço público. Muito enrolado, muito demorado, muito, muito errado. Um completo engano. Onde está minha casa na praia, meu cachorro correndo na areia, meu computador cheio de estórias, minha clínica cheia de glórias? E agora, o que é que se faz? Desencarnar? Começar tudo de novo?
Preciso reclamar! Eles me esqueceram aqui, me deixando levar pelas fatalidades do dia a dia. Não sei porque me mandaram para os Estados Unidos! Para morrer de frio, passar 17 anos com as amizades erradas, no endereço errado, dirigindo até o carro errado! Comprando o shampoo errado, falando a língua errada, dirigindo na direção errada.
Senhoras e senhores, até a época em que nasci foi errada. Me colocaram neste emaranhado de opções, do consumismo capitalista americano, também no signo errado. Uma libriana não deveria nunca morar nos Estados Unidos. Quem consegue tomar decisões quando as opções são tantas! A começar pelos tipos de chá. Qual o chá ideal para se tomar num janeiro frio? O de camomila, preto, mate leão, inglês, chá verde, de laranja ou amora, gengibre ou menta, chá para dormir ou acordar, chá para emagrecer ou engordar, chá verde com laranja, ou verde com menta? Ninguém aguenta! E as vitaminas, que libriana no mundo consegue decidir quais tomar? Vitamina A, B, C, ou o complexo B? A famosa multi-vitamina, que tem o Ferro que eu não preciso, ou a combinação C, D e Caroteno? Talvez eu precise só de Magnésio e Zinco, mas em que época do ano? E pra que mesmo?
Tudo um grande engano. E as amizades, já me enganei tanto! Aquelas que pareciam eternas e desapareceram. Aquelas que pareciam leais e me passaram para trás. Daqueles que queriam o meu bem, não sobrou ninguém. Me enganei já tantas vezes que nem sei. Talvez se ficar trancada dentro de casa parem de me enganar. Mas meu cérebro se engana sozinho, nos vastos caminhos dos meus pensamentos, em linhas curvadas e cruzadas, em noites solitárias e escuras, em dias longos e silenciosos.
Isto está mais parecendo um longo e cansativo lamento. Não, meus amigos, não. Não estou pensando claramente hoje para colocar os pontos certos nos iiiiiiiiiiiiis. O raciocínio desliza num mundo incoerente que é a minha mente. As vezes sem ponto nenhum de referência, num mar profundo, sem consequência. O que vem, vem que vem sem saber pra onde ir. Mas não se preocupem, pois amanhã tudo muda, tudo gira, tudo se regenera. Amanhã tudo será diferente do que hoje é. E o óbvio não será mais, e nem enganos, nem dúvidas, nem rodeios, nem tristeza, nem tempo perdido haverá. Amanhã tudo será. O ponto de partida é o hoje e agora, sem mais demora, devo parar de me iludir, enviar uma reclamação aos céus, uma notinha, para eles se lembrarem que eu estou aqui a me enganar...
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Talking Heads - "Once in a Lifetime"
http://www.youtube.com/watch?v=5mHnzGoX1fY
Um comentário:
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A great read. Good to see some things never change.
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