sexta-feira, dezembro 09, 2005

A Língua e a Palavra

Stamford, CT

Eu, meu café e meu pãozinho. Menos dois graus Celsius lá fora e a primeira neve de dezembro não pára de cair.

Neve, a poesia do inverno. É como se o mundo parasse. Confesso que é um momento esperado ansiosamente por mim. O momento que o mundo pára para podermos colocar as idéias em ordem, pensar na vida, respirar fundo e reavaliar a correria do dia a dia. As aulas foram canceladas, o meu trabalho eu cancelei. Todos os compromisos são adiados, e tudo que se tem a fazer é ficar em casa e ouvir o silêncio da rua, o silêncio da neve, o céu caindo sobre nós, assistir a este maravilhoso cenário branco e sedoso, perfeito e limpo, estático e esquecido.
Logicamente esta linda poesia é assistida de dentro de casa, com o aquecedor no máximo, as janelas bem fechadas, a lareira ligada, um chinelo no pé e o cafézinho quentinho na mão. Daqui eu não saio daqui ninguém me tira. Ah! É realmente como nos filmes. Me sinto como uma escritora famosa que alugou uma cabine nas montanhas e foi se isolar do mundo para escrever um livro. A única diferença é que já fui interrompida 10 vezes pela minha filha em meio a dois parágrafos!
O inverno não é de todo mal assim. O único problema é que dura 6 meses do ano nesta parte do mundo. Fora isso nos dá a oportunidade de ficarmos mais introspectivos, de comer foundue, ler mais, ouvir mais música e ficar mais em casa, nos forçando a criar uma relação mais aconchegante com nós mesmos. Me ocorreu agora porque as casas por aqui tendem a ser tão maiores do que as do Brasil. O tempo que se passa dentro de casa é 3 vezes maior que nas regiões tropicais, criando assim uma necessidade de espaço imprescindível e, cá entre nós, muito necessário. Bom, mas isso tudo não vem ao caso hoje.
Hoje gostaria de falar sobre a arte de escrever. Não que eu tenha muita experiência no assunto, já que não escrevo com frequência a muitos anos e nos anos em que escrevia estava começando a engatinhar nesta área. Em outras palavras, continuo a engatinhar na minha escrita, especialmente agora que fazem 17 anos que leio e escrevo muito em inglês, meu português anda fraco. Meu vocabulário, em português, estacionou aos meus 18 anos, quando ainda era início de projeto intelectual querendo ser gente. Nesta minha última visita à São Paulo percebi como meu vocabulário anda pobrezinho, subdesenvolvido, um tanto imaturo, e como minha articulação verbal anda prejudicada.
É interessante realizar que é impossível ter o domínio de duas línguas. Sempre achei curioso ouvir que fulano fala fluentemente 4 línguas, cicrano é um poliglota e tanto. Modéstia a parte, sempre tive facilidade na área das línguas latinas. O italiano aprendi como uma fácil melodia, o espanhol assimilei como um português com sotaque. Com o francês não me envolvi muito, mas tenho certeza que assimilaria facilmente. O português, sendo minha língua nativa, é uma doce brincadeira. Já o inglês foi um tanto sofrido, mas hoje enrolo a língua facilmente e minha articulação verbal é mais fluente do que no português. Mas não me sinto confidente em dizer que falo quatro línguas fluentemente. I-m-p-o-s-s-í-v-e-l.
Quando engravidei, comprei um livro em inglês sobre o assunto e, com meu dicionário, passei meses estudando o vocabulário de todas a partes anatômicas do meu corpo que seriam utilizadas no processo, do enxoval do bebê, da mamadeira a como xingar o médico e a enfermeira na hora do parto (por aqui a gente não marca cesária e se bobear não se toma anestesia). Logicamente foram muito válidos estes estudos, com excessão da parte do xingamento. Na hora H foi tudo em português mesmo! Mas o que eu quero dizer é que, após 10 anos de inglês fluente, não sabia me comunicar com um médico a respeito da minha gravidez. Então, a próxima vez que alguém cruzar o seu caminho e afirmar que é um poliglota, peça-lhe para te dar uma explicação detalhada, passo a passo, de como fazer tricô em japonês, russo e espanhol.
Voltando ao assunto da arte de escrever, chego a conclusão que não tenho muito a dizer. Pois se tecnicamente e academicamente falando não tenho experiência nenhuma, cometeria um grande erro falar de algo que não sei. Sei apenas que escrevo porque gosto, escrevo porque amo. Escrevo porque me livro do que penso e por isso fico mais leve. Os pensamentos pesam, sabiam? Mas vejam só as maravilhas da língua portuguesa: “me livro do que penso” e, me livrando do que penso escrevo um livro, assim me liberando! Um trocadalho do carilho...
Escrevo porque Fernando Sabino me inspira e também Gabriel Garcia Marques, Isabel Allende, Jorge Amado, Laura Esquivel, Fannie Flagg, J.K. Rowling, Victor Hugo, Luis Fernando Veríssimo, Leo Tolstoy, D.H. Laurence, Henry Miller, Milan Kundera, Carlos Drummond, Clarisse Lispector entre outros tantos admiráveis e maravilhosos escritores que enchem de livros as bibliotecas do mundo, os corações dos homens, preenchendo as mentes humanas de poesia, fantasias e sonhos infindáveis.
A força da palavra é colossal. A palavra falada tem uma força diferente da escrita. A palavra falada pode ter uma vida passageira, como o vento, ou eterna. Quantas vezes ouvimos qualquer coisa trivial que nos marca para o resto da vida? Como no caso da minha avó me ensinando a fazer a cama: ¨Estique o lençol bem esticadinho, sem deixar nenhum enrugadinho.¨ Até hoje penso na vovó todas as vezes que faço a cama e nunca consegui simplesmente jogar o lençol e sair andando. Tem que estar bem esticadinho. Isso quando arrumo a cama.
Com este poder, imaginem as marcas que deixam as palavras amargas, as agressões verbais. Mas a palavra falada tem uma desvantagem com relação a escrita: ela pode ser mal interpretada, disfarçada, corrigida, emendada. Quanto a escrita, ela é o que é. É verdade que toda interpretação das palavras será subordinada a percepção da realidade de quem as ouve ou lê. Mas quando se escreve, a coisa muda, a responsabilidade é maior. A escrita é o registro eterno daquilo que pensamos e sentimos. Mutável? Sim. Marcante? Com certeza. Poderoso? Demasiadamente.
A palavra escrita é eterna. Ecoa na mente e vibra as energias de todo o nosso corpo. A escrita é a concretização das idéias do mundo. E eu, singela escritora, gostaria de submeter-me a esta arte, assumindo todas as responsabilidades eternas dos efeitos que as minhas palavras virão a ter naqueles que tropeçarem por estas linhas.
Sendo assim, só me resta dizer que: “Existo, logo escrevo”.